domingo, 24 de fevereiro de 2013

EDUCAÇÃO LITERÁRIA COMO DIREITO DE CRIANÇAS E JOVENS.

Profa. Joseane Maia Santos Silva



 Doutora em Letras (USP) e Professora Adjunto do Centro de Estudos Superiores de Caxias-UEMA e da Rede Estadual de Ensino.

1-A FORÇA DA PALAVRA NA LITERATURA
Ultimamente a idéia de escrever sobre educação literária tem sido recorrente. Sempre que leio uma obra poética ou ficcional cujo jogo expressivo com a linguagem me leva a pensar sobre a vida, a lembrar de fatos vividos ou somente me faz sentir um profundo prazer em apreciá-la, reflito, não sem uma grata alegria, que isso somente foi possível por causa da Literatura.  
Esse pensamento metaliterário tornou-se fortemente consciente quando li o romance A Última Quimera, da premiada escritora cearense Ana Miranda, livro presenteado pela própria, quando esteve em Caxias, para participar do encontro do PROLER, em 2008. Eis o trecho, lido mais de uma vez, que comprovou o quanto pode o efeito estético da linguagem literária: “Subo os degraus da entrada, atrás de Esther. Há uma vassoura encostada num canto. Uma poeira dourada flutua dentro da casa, iluminada pelos raios de sol matinal que entram pela janela[1].
Por que uma descrição tão simples teve tamanha repercussão na minha condição de leitora a ponto de suscitar a escritura desse texto? É que a cena me reportou a um dado momento da minha infância, com minha mãe varrendo e provocando a mesma imagem, maravilhosa, impressionante, porém, indescritível, pelo menos para mim que não sou poeta. Guardada na memória, a cena me foi resgatada pela força da palavra organizada de uma maneira tal que a comunicabilidade foi instantânea, despertando especial significado. De uma visão fragmentada, vaga, até pela distância do tempo, esse fato passou a uma dimensão integrada ao meu mundo vivido, numa teia de relações familiares, fortemente marcadas pela presença materna na minha vida toda.


[1] MIRANDA, Ana. A Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 245.


Li recentemente A menina que roubava livros, do australiano Markus Zusak, uma obra que abala a estabilidade do leitor, pelo inusitado do narrador (a morte), pelo contexto histórico da narrativa (a Alemanha nazista) e, principalmente, pela temática da obra  (a vida durante uma guerra). O percurso narrativo, nada convencional,  capta o leitor através de uma prosa poética, envolvente, refinada, irônica, profundamente pungente sem ser piegas. A personagem, Liesel Meminger, descobre desde cedo (ela tem apenas nove anos) que o sentido da vida, em meio à miséria, à morte e à destruição causada por uma guerra estúpida, pode ser compreendido pela palavra escrita – por isso ela se torna uma roubadora de livros.
Marquei várias páginas onde o trabalho estético com a palavra, levado a efeito pelo autor, funciona como um refrigério diante da dureza do fato relatado. Por exemplo, o judeu que mora no porão da casa dos pais adotivos da menina pede-lhe que diga como está o tempo. Ela assim descreve: “Hoje o céu está azul, Max, e tem uma nuvem grande e comprida, espichada feito uma corda. Na ponta dela, o sol parece um buraco amarelo...”[1] O perigo iminente porque passa a família que esconde um judeu, o estado físico e psicológico deste depois de tanto tempo sem ver a luz do dia, tudo traduz uma atmosfera angustiante e sombria, porém a descrição de Liesel  serve como um chamamento para a beleza do cotidiano, o mesmo transformado cruelmente pela força do discurso e pela insanidade dos propósitos de Hitler.  Em resumo, todas as informações que li nos livros didáticos sobre a 2ª. Guerra Mundial ganharam novas cores,  a partir da leitura dessa obra, enquanto fruto da imaginação criadora sobre as potencialidades da linguagem, ainda que baseada em fatos reais.                                      
Como compreender esse efeito da literatura no leitor?
Para Antonio Candido, isso acontece porque, enquanto fruto da criação do escritor, a palavra organiza o caos originário (a realidade) que, por sua vez, organiza o caos interior do leitor, isto é, “Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido”[2]. Enquanto para Vincente Jouve, a leitura de uma obra literária é, ao mesmo tempo, uma experiência de libertação e de preenchimento que renova nossa percepção de mundo, modifica nosso olhar sobre as coisas e, ainda, nos permite reencontrar sensações da infância. Um detalhe de um personagem, a descrição de um ambiente, uma imagem podem ressuscitar “um passado privado, fugaz e, em grande parte, inconsciente... Uma única palavra às vezes pode fazer surgir um passado: por meio da leitura, o texto remete cada um à sua história íntima”[3]. E cada leitor, ao percorrer um universo fictício, escapando do seu próprio, abre-se para a experiência do outro, num desdobramento que implica contemplação e participação, de acordo com a distância histórica que o separa da obra.
 Mas não seria um exagero que a realidade, com toda sua complexidade, seja organizada pela palavra literária? Que uma vez constituindo-se representação dessa realidade esta seja compreendida sob sua ótica?  Não. Embora, a Literatura não seja  um par de óculos, absoluto, através do qual a vida seja traduzível em toda sua nuança, ao conjugar conteúdo e forma, ela atua na mente do ser humano, tornando-o consciente de sentimentos e emoções que redundam em conhecimento de si mesmo e do outro. Por isso, a Literatura traz na sua essência a capacidade de humanizar.
Como afirma Nelly Novaes Coelho, a obra literária, devido à natural complexidade de sua matéria prima (a vida, o ser humano) é um fenômeno basilar a ser descoberto como processo de conhecimento do mundo. Nomeando a Literatura como uma das mais importantes ciências do imaginário, a autora deposita alta expectativa no texto literário por ser este fruto de “... um autêntico e complexo exercício de vida, que se realiza com e na linguagem – esta complexa forma pela qual o pensar se exterioriza e entra em comunicação com os outros pensares”[4].
Detentora de riqueza polissêmica, a palavra, na poesia ou na ficção, confere ao leitor a oportunidade de participar do jogo criativo com a linguagem, fazendo-o interagir com o mundo proposto pelo autor, numa troca comunicativa que aumenta a capacidade de ver, de sentir a realidade objetiva e subjetiva. A Literatura faz circular entre os povos de diferentes lugares e diferentes épocas o sentido da humanidade.  Por essa razão,
A obra literária pode ser entendida como uma tomada de consciência do mundo concreto que se caracteriza pelo sentido humano dado a esse mundo pelo autor. Assim, não é um mero reflexo na mente, que se traduz em palavras, mas o resultado de uma interação ao mesmo tempo receptiva e criadora[5].

            Essa dimensão conjugada da Literatura – a de oferecer fruição estética e conhecimento – confere-lhe importância fundamental porque, na contramão da modernidade em que o entretenimento fácil possui três letras (BBB), em sua décima primeira versão,  oferece condições de enfrentamento da alienação, da análise superficial da vida e do mundo. O fato de a Literatura ser deleite desperta críticas em alguns teóricos que rechaçam o escapismo que a caracteriza, porém ao mostrar questões fundamentais da existência humana, não diretamente, porque usa uma linguagem simbólica, ela indaga sobre nós mesmos, sobre o outro, enfim sobre o modo de ser e estar no mundo. Em outras palavras, enquanto sistema (produtor-receptor-transmissor), com suas características internas (língua, temas, imagens), juntamente com elementos sociais e psíquicos, a Literatura forma um tipo de comunicação inter-humana, através da qual “as veleidades mais profundas do indivíduo transformam-se em elementos de contato entre os homens e de interpretação das diferentes esferas da realidade”[6].
No texto literário as palavras são articuladas de tal modo que formam um tecido estético que dão a impressão de que o leitor está em contato com realidades vitais, criam a impressão de verdade. E com essa realidade inventada nos envolvemos, aprendemos, concordamos, discordamos e passamos a conhecer melhor a realidade vivida. Tudo a partir da comunicabilidade de uma obra que é fruto da capacidade inventiva da mente de uma pessoa que sequer conhecemos, mas que tem tudo a ver com nossos sonhos, desejos, angústias, medos e devaneios. Diante dessa potencialidade, é fundamental entender as características do texto literário.

2-O TEXTO LITERÁRIO E O PODER FORMADOR DA MENTE HUMANA
Ao aceitar que Literatura oferece amplas possibilidades de enriquecer nossa percepção e visão de mundo, importa compreender que:
  •   O texto literário situa-se no âmbito da ficção, portanto possui significado autônomo e não se refere diretamente ao contexto;
  •  Por ser independente de referentes reais, a obra literária efetiva-se pela composição de seus elementos estruturais (a forma, a disposição no papel, a linguagem conotativa);
  •   A obra literária apresenta um mundo possível, com espaços vazados, que são preenchidos pelo leitor com sua história de vida. É a inserção do leitor na escrita do autor, inscrevendo-se entre entrepalavras;
  •   A riqueza polissêmica da obra literária é um campo de plena liberdade que desobriga o leitor das amarras do cotidiano, residindo aí o prazer da leitura;
  •  A obra literária leva o leitor a participar ativamente da sua construção e reconstrução, segundo sua capacidade intelectual de produzir novos conhecimentos. Apropriadamente, Michel Certau nomeia o leitor um caçador em terras alheias;
  •   Para Vera Teixeira Aguiar, na Literatura o leitor encontra o que não pode ou não sabe experimentar na realidade. Advém dessa dimensão o fato de ser considerada escapista, corruptora e alienante, mas é também por causa disso que o leitor amplia suas fronteiras sem correr os riscos da aventura real;
  •  Porque tangencia questões básicas atinentes à vida, na maior parte das vezes,  nas camadas do subconsciente e do inconsciente, a Literatura amplia os horizontes existenciais;
  •   Na obra literária há uma espécie de jogo que força o exercício da inteligência para além dos limites do próprio texto, por isso, com razão, Marisa Lajolo afirma que nós, leitores, não chegamos os mesmos ao final de um texto;
  • Em resumo, o texto literário caracteriza-se por sua função estética, por sua natureza ficcional, por seu caráter de subjetividade e por sua plurissignificação.
Com essas características, o objeto literário reveste-se de um valor intrínseco como formador de mentes. Afinal, no mundo fragmentado de hoje, predominantemente imagético, a palavra se faz imperiosa para nomear realidades que, frequentemente, se mostram tão sem sentido aos nossos olhos. Ora, se a Literatura desenvolve a sensibilidade estética, suscita emoção, alimenta o imaginário, promove o prazer e também transmite conhecimentos, não é exagerado dizer, então, que é uma necessidade humana e, consequentemente, um direito do cidadão.
Assim, até que ponto a nação brasileira tem honrado o compromisso de tornar o objeto livro um bem disponível para todas as classes sociais? A história da leitura em nosso país mostra que não temos bibliotecas públicas para atender a demanda existente e sequer existe número de livrarias compatível com o número de habitantes, portanto estamos muito longe ainda do patamar dos países desenvolvidos. Ainda assim, há consideráveis avanços quanto à democratização do acesso ao livro nas escolas públicas.
E do ponto de vista das classes populares é nos espaços da escola que o livro deve ser disponibilizado, sob pena de comprometer o processo de humanização de crianças e jovens, que nas palavras de Antonio Candido é analisado como:
...o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante[7].
E Literatura de qualidade não falta. Seja para adultos, seja para crianças e jovens, a ficção e a poesia brasileiras tendem cada vez mais a se assumirem como espaço metafórico que reflete a complexa rede de relações do homem no mundo.  A boa nova é que obras literárias de todos os gêneros e temáticas estão chegando em nossas escolas públicas, através de programas federais de incentivo à leitura, com destaque para o PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA-PNBE.
Entretanto, com mais de dez anos de política de distribuição de livros de literatura, nem professores, nem alunos estão lendo como deveriam, tampouco as salas de leitura e/ou bibliotecas constituem-se o vetor do planejamento pedagógico das escolas, conforme comprova pesquisa do MEC, feita por amostragem, em todo o país, há dois anos atrás[8].   
Tendo como símbolo a chave, os espaços de leitura das escolas estão guardando tesouros que não cumprem a missão de transmitir um dos mais importantes legados da humanidade – a Literatura universal e nacional – por uma razão muito simples: não há o encontro entre livros e leitores. Ou seja, crianças e jovens brasileiras têm sido cerceadas nos seus direitos de tornarem-se leitores porque o livro sozinho não faz esse milagre.
O que fazer para que essa necessidade básica – a Literatura – seja usufruída por quem de direito? É imperioso que a escola desenvolva a educação  literária.

3-EDUCAÇÃO LITERÁRIA COMO DIREITO DE CRIANÇAS E JOVENS
            Todo processo educativo exige objetivo, metodologia, sistemática e com a educação literária não é diferente.  Aliás, pressupõe muito mais do que é habitual nas escolas brasileiras. Comemorações alusivas ao dia do livro, cantinho da leitura, recital de poesia, encenações teatrais, todas essas atividades são deveras importantes, despertam o interesse pelo livro e inculcam no imaginário da comunidade escolar a importância da leitura, contudo tem se revelado pouco produtivo para tornar o ato de ler uma atividade com criticidade. Portanto, se faz necessário que gestores e professores, os sujeitos protagonistas do processo de formação de leitores, desenvolvam ações sistemáticas que resultem na construção de uma educação literária.
            Educação literária significa que, ao ler uma obra fictícia ou poética, o leitor possa construir sentidos a partir dos recursos lingüísticos de que dispõe e da experiência que a vida lhe tem conferido. É ter a capacidade de experimentar o texto literário, apropriar-se dele para fazer/retirar sentido nas suas múltiplas dimensões: lingüística, formal, artística e sensorial, uma vez que a Literatura, principalmente a destinada às crianças e aos jovens, é o espaço de convergência de multilinguagens. Porém, essa condição não se dá num estalar de dedos. Tampouco se forma leitores por decreto. É um processo que envolve enfrentamento de todos que compõem a comunidade escolar.
            Penso, não no âmbito das possibilidades, penso no âmbito real, visualizando caixas de livros que têm chegado, todos os anos, desde 1998, nas  escolas públicas, que o planejamento pode e deve ter o acervo do PNBE como eixo norteador de atividades de leitura. Para tanto, livros devem estar disponibilizados aos professores, para que estes não acusem gestores de serem guardadores de livros. Por outro lado, os professores precisam usar o acervo onde há  total liberdade para isso, de modo a não serem  acusados por gestores de que não têm o menor interesse pelo livros que chegam.
 Analisando este jogo de acusações mútuas, a resposta à seguinte pergunta deveria ser o foco principal: afinal, onde se esconde a verdade do problema da leitura em nossas escolas? Não está escondida, está visível na performance dos alunos que não lêem nada,  lêem pouco, lêem mal ou não são estimulados a lerem Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Machado de Assis, Vinícius de Moraes, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Cecília Meireles, Mário Quintana, Júlio Vernes, Homero, Pablo Neruda, Guimarães Rosa, Gonçalves Dias, Bartolomeu Campos Queiroz, Ricardo Azevedo, Eva Furnari, Lúcia Pimentel Góes, Elias José, para citar alguns autores do PNBE cujas obras continuam intactas.  Em algumas escolas, são anos a fio sem que haja iniciativa de promover o encontro entre LIVROS E LEITORES. Em outras, são anos a fio fazendo atividades apenas pontuais para cumprirem o calendário cultural.
Assim sendo, é muito produtivo projetos de leitura na ótica da interdisciplinaridade em que professores das mais diferentes áreas façam o planejamento em conjunto, escolham determinadas obras do acervo, leiam num primeiro momento somente apreciando a narrativa. Tomo como exemplo a obra A volta ao mundo em oitenta dias, de Júlio Verne, PNBE/2009[9]. Impossível não sentir emoção lendo tamanha aventura, impossível não torcer para que Phileas Fogg ganhe a aposta feita com seus amigos.  Para tanto, há de se compartilhar a narrativa no dia a dia, um capítulo ou dois, criando expectativa para o dia seguinte. Num segundo momento, ao final do livro, a abordagem pode ser direcionada para diferentes pesquisas. As perguntas são várias: Como era o mapa da Europa naquela época em comparação com o mapa atual?  Como é uma procissão religiosa hindu? Quantas colônias inglesas havia  ao final do século XIX? O que foi a Corrida do Ouro em São Francisco? O que significa para os americanos a expressão ocean to ocean? Quais os dados matemáticos  da famosa linha férrea que liga as duas costas marítimas dos Estados Unidos, do Atlântico e do Pacífico?  Como seria a descrição das residências japonesas sob a ótica de Jean Passepartout durante a viagem? São curiosidades que, inseridas nas áreas de Geografia, Filosofia, História, Inglês, Matemática e Português, transmitem conhecimentos importantes, alimentam o imaginário e estabelecem um vínculo afetivo com a obra lida, uma vez que “o aprendizado a partir da relação leitor-texto parte dos aspectos sensoriais (ver, ouvir os símbolos lingüísticos) e dos aspectos racionais (analisar, criticar, correlacionar, interpretar)”[10].
Igualmente, levantar questões antes da leitura se mostra um instrumento bastante eficaz para criar expectativas e ativar conhecimentos prévios. Sobre A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos-PNBE/2010[11], por exemplo, pode-se perguntar para aguçar o interesse do leitor: Quais características teria um menino que fosse bastante diferente do ponto de vista físico? Que coisas maravilhosas há em Tatipurun, um país fictício?  Caralâmpia é nome de gente, de animal ou de fruta? Como é a noite no país de Tatipurun? Se uma aranha falasse o que diria para um menino? O que você faria se acordasse num lugar bastante estranho? Como seriam as pessoas num país bem diferente do Brasil?
É preciso enfatizar que do ponto de vista da linguagem,  o professor precisa, no ato da leitura compartilhada,  chamar a atenção do aluno-ouvinte para certas construções estilísticas da obra lida que fazem com que o modo como foi dito certa idéia que o autor quis transmitir apresente o mais alto grau de significado, o máximo de literariedade. Comentar as potencialidades da língua numa obra literária se reveste de importância porque assim o leitor mergulha na palavra e suas ilimitadas possibilidades comunicativas e expressivas de sentido.
Assim, sem  retórica e sem floreio,  o planejamento de leitura do acervo do PNBE deve elencar objetivos exeqüíveis, descrever uma metodologia simples (inclusive citando as obras a serem lidas durante o ano) e uma sistemática efetiva. Sem arremedos e sem distorções, práticas de leituras devem ser desenvolvidas por todos os professores em todas as áreas[12] (e não somente por professores de Português), numa ação coletiva, demonstrando para a comunidade escolar que a meta, inequivocamente, é a elevação do nível de leitores, ainda que a subjetividade seja a marca de cada mediador de leitura no desenvolvimento das atividades.
Não posso deixar de registrar minha resistência em abordar um trabalho com a Literatura com esse viés pedagógico, uma vez que tenho defendido exaustivamente o prazer de ler simplesmente. Todavia, creio ser possível conciliar práticas leitoras de modo a não empobrecer a arte literária, a não privilegiar teorias críticas em detrimento da busca de uma familiaridade prazerosa com a obra. Além disso, preocupa-me que sem planejamento se perca a constituição de um horizonte de qualidade e de aprofundamento das obras lidas, porque como Teresa Colomer acredito que “ler se aprende lendo”[13].
Lembrando que  o exposto não é uma receita, mas uma construção individual com todos as dificuldades inerentes ao processo educativo, acredito  na viabilidade de uma educação literária em escolas públicas. Porque se não há saída para crianças e jovens sem a educação formal, também não há alternativa para uma educação de qualidade sem práticas de leitura eficientes e envolventes. Se enquanto objeto, o livro já se constitui um direito conquistado nas escolas, o que estamos esperando para torná-lo um direito concreto para o leitor pelo uso efetivo?
Até a década de 90, dentre os inúmeros problemas considerados como empecilho às práticas leitoras dizia respeito à ausência  do livro. No entanto, hoje, passados mais de dez anos do programa que o distribui em todas as escolas brasileiras, a utilização do acervo está muito longe do esperado. Se a Literatura brasileira, incluindo a infantil e juvenil, goza de alto prestígio aqui e alhures (atingiu maturidade plena), se abundam no mercado editorial as produções teóricas e metodológicas sobre o fazer pedagógico do processo de formação de leitores e, por fim, se todos reconhecemos no ato de ler o pulo do gato para uma educação de qualidade, por que não repensar as estratégias das nossas ações?
Ocorre que chegamos a um estágio em que aceitamos o status quo como definitivo, admitimos que o fato de crianças e jovens não quererem ler seja a maneira mesmo deles serem como são, que é normal essa alienação acerca da palavra e fascinação pela imagem. Pois, creio ser possível caminhar na contramão disso tudo. Com tantos livros  ao nosso alcance sobre a existência humana e sobre os mistérios da vida, vamos nos recusar ao que parece a lógica dos tempos modernos -  a da distração vazia e da banalidade - patrocinada pela mídia e disponibilizada aos nossos alunos. Vamos ler esta Literatura feita para conhecer a vida, que faz indagações sobre modos de ser, que questiona a dinâmica da realidade. Para tanto, é preciso vivenciar a palavra na condição de arte, num exercício permanente, através de um caminhar juntos – alunos e professores – descobrindo que,
A literatura constitui a possibilidade, pela convivência com a contínua produção e com a circulação de percepções e indagações inusitadas, de uma pessoa ou de um coletivo de pessoas de pensar a vida delas, os modos de ser e estar no mundo; enfim, de viver e fazer a condição humana[14].

Construir e executar um planejamento que tenha como meta conhecer o acervo do PNBE, reveste-se de importância porque sabemos que o direito de ler é pressuposto basilar da cidadania, da democracia cultural. Sabemos quais as conseqüências de uma educação literária, afinal ao se ocupar da palavra, tanto como “... expressão artística quanto como meio de comunicação, a questão torna-se mais contundente, tendo em vista o incontestável poder político de ler e escrever a palavra[15].  
 Por que se constitui um dever de todos nós, professores, compartilharmos Literatura com crianças e jovens?  A razão é simples: não há educação, no sentido pleno da dimensão do aprender, ser sensível, ético e tolerante, fora dessa decisão.  Para tanto, precisamos ter a convicção de que ler Literatura é uma experiência de nomeação, de conhecimento de si e do outro,  é uma maneira de aprender através da palavra mais subjetiva possível. Entretanto, bradar um discurso apologético sobre a importância de ler é dispensável, pois o exemplo tem que falar por si. A propósito,  o Manifesto por um Brasil literário, em texto escrito por Bartolomeu Campos de Queirós, divulgado em 2009, conclama a todos os brasileiros a empreenderem esforços para tornar a leitura literária um direito de todos. Assim, cada professor(a) pode perguntar a si mesmo(a): que ações vou desenvolver em sala de aula para tornar concreto esse direito?
Reconhecendo quão difícil  e exigente é formar leitores, é bom lembrar que  você, professor(a), pode fazer tudo que está ao seu alcance para fazer com que seus alunos leiam e, ainda assim, muitos não se deixarão contagiar pelo seu entusiasmo.  Contudo, se apenas um aluno demonstrar interesse em compartilhar dessa vivência, terá valido a pena a decisão de educar, humanizando pela palavra literária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITTO, Luiz Percival Leme. Literatura, Conhecimento e Liberdade. IN: Nos caminhos da literatura. FNLIJ;C&A (org.) São Paulo: Peiropólis, 2008.
CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. São Paulo, Ed. Duas Cidades, 1995.
_______________. A formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2006.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis, 2000.

 COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. IN: Nos caminhos da literatura. FNLIJ;C&A (org.) São Paulo: Peiropólis, 2008.

GÓES, Lúcia Pimentel. Fábula Brasileira ou Fábula Saborosa: sábia, divertida, prudente, criativa. São Paulo: Paulinas, 2005.
JOUVE, Vincente. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993.
LEAHY-DIOS, Cyana. Língua  e Literatura: uma questão de educação. Campinas, SP: Papirus,2001.
RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
MAIA, Joseane. Literatura na formação de leitores e professores.São Paulo: Editora Paulinas, 2007.
MIRANDA, Ana. A Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 245.
TEIXEIRA, Vera Aguiar & BORDINI, Maria da Glória.Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1993.
ZUSAK, Markus. A menina que roubava livros. São Paulo: Editora Instrínseca, 2010.





[1] ZUSAK, Markus. A menina que roubava livros. São Paulo: Editora Instrínseca, 2010, p. 223.
[2] CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. São Paulo, Ed. Duas Cidades, 1995, p.178.
[3] JOUVE, Vincente. A leitura. São Paulo: Editora UNESP,  2002, p. 119.
[4] COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 24
[5] TEIXEIRA, Vera Aguiar & BORDINI, Maria da Glória.Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1993, p. 14.
[6] CANDIDO, Antônio. A formação da Literatura Brasileira:momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2006, p.25. 
[7] Vários Escritos. p.180.
[8] PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA (PNBE): leitura e bibliotecas nas escolas públicas brasileiras.Brasília: Ministério da Educação, 2008.
[9] A volta ao mundo em oitenta dias/Júlio Vernes; recontada por Fernando Nuno; São Paulo:DCL, 2005.
[10] GÓES, Lúcia Pimentel. Fábula Brasileira ou Fábula Saborosa: sábia, divertida, prudente, criativa. São Paulo: Paulinas, 2005.
[11] RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
[12]Além das obras literárias compõem o acervo do PNBE livros paradidáticos de excelente qualidade  em todas as áreas do conhecimento, os quais proporcionam práticas leitoras instigantes e prazerosas.
[13] COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. IN: Nos caminhos da literatura. FNLIJ;C&A (org.) São Paulo: Peiropólis, 2008.

[14] BRITTO, Luiz Percival Leme. Literatura, Conhecimento e Liberdade. IN: Nos caminhos da literatura. FNLIJ;C&A (org.) São Paulo: Peiropólis, 2008, p. 100.
[15] LEAHY-DIOS, Cyana. Língua  e Literatura: uma questão de educação. Campinas, SP: Papirus,2001, p.11.


Nenhum comentário:

Postar um comentário