1-A FORÇA DA
PALAVRA NA LITERATURA
Ultimamente a idéia de
escrever sobre educação literária tem sido recorrente. Sempre que leio uma obra
poética ou ficcional cujo jogo expressivo com a linguagem me leva a pensar
sobre a vida, a lembrar de fatos vividos ou somente me faz sentir um profundo
prazer em apreciá-la, reflito, não sem uma grata alegria, que isso somente foi
possível por causa da Literatura.
Esse pensamento
metaliterário tornou-se fortemente consciente quando li o romance A Última Quimera, da premiada escritora
cearense Ana Miranda, livro presenteado pela própria, quando esteve em Caxias,
para participar do encontro do PROLER, em 2008. Eis o trecho, lido mais de uma
vez, que comprovou o quanto pode o efeito estético da linguagem literária: “Subo
os degraus da entrada, atrás de Esther. Há uma vassoura encostada num canto. Uma
poeira dourada flutua dentro da casa, iluminada pelos raios de sol matinal que
entram pela janela”[1].
Por que uma descrição tão
simples teve tamanha repercussão na minha condição de leitora a ponto de
suscitar a escritura desse texto? É que a cena me reportou a um dado momento da
minha infância, com minha mãe varrendo e provocando a mesma imagem, maravilhosa,
impressionante, porém, indescritível, pelo menos para mim que não sou poeta.
Guardada na memória, a cena me foi resgatada pela força da palavra organizada
de uma maneira tal que a comunicabilidade foi instantânea, despertando especial
significado. De uma visão fragmentada, vaga, até pela distância do tempo, esse
fato passou a uma dimensão integrada ao meu mundo vivido, numa teia de relações
familiares, fortemente marcadas pela presença materna na minha vida toda.
[1]
MIRANDA, Ana. A Última Quimera. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 245.
Li recentemente A menina que roubava livros, do
australiano Markus Zusak, uma obra que abala a estabilidade do leitor, pelo
inusitado do narrador (a morte), pelo contexto histórico da narrativa (a
Alemanha nazista) e, principalmente, pela temática da obra (a vida durante uma guerra). O percurso
narrativo, nada convencional, capta o
leitor através de uma prosa poética, envolvente, refinada, irônica,
profundamente pungente sem ser piegas. A personagem, Liesel Meminger, descobre
desde cedo (ela tem apenas nove anos) que o sentido da vida, em meio à miséria,
à morte e à destruição causada por uma guerra estúpida, pode ser compreendido
pela palavra escrita – por isso ela se torna uma roubadora de livros.
Marquei várias páginas
onde o trabalho estético com a palavra, levado a efeito pelo autor, funciona
como um refrigério diante da dureza do fato relatado. Por exemplo, o judeu que
mora no porão da casa dos pais adotivos da menina pede-lhe que diga como está o
tempo. Ela assim descreve: “Hoje o céu está azul, Max, e tem uma nuvem grande e
comprida, espichada feito uma corda. Na ponta dela, o sol parece um buraco
amarelo...”[1]
O perigo iminente porque passa a família que esconde um judeu, o estado físico
e psicológico deste depois de tanto tempo sem ver a luz do dia, tudo traduz uma
atmosfera angustiante e sombria, porém a descrição de Liesel serve como um chamamento para a beleza do
cotidiano, o mesmo transformado cruelmente pela força do discurso e pela
insanidade dos propósitos de Hitler. Em
resumo, todas as informações que li nos livros didáticos sobre a 2ª. Guerra
Mundial ganharam novas cores, a partir
da leitura dessa obra, enquanto fruto da imaginação criadora sobre as
potencialidades da linguagem, ainda que baseada em fatos reais.
Como compreender esse
efeito da literatura no leitor?
Para Antonio Candido,
isso acontece porque, enquanto fruto da criação do escritor, a palavra organiza
o caos originário (a realidade) que, por sua vez, organiza o caos interior do
leitor, isto é, “Toda obra literária pressupõe esta superação do caos,
determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de
sentido”[2].
Enquanto para Vincente Jouve, a leitura de uma obra literária é, ao mesmo
tempo, uma experiência de libertação e de preenchimento que renova nossa
percepção de mundo, modifica nosso olhar sobre as coisas e, ainda, nos permite
reencontrar sensações da infância. Um detalhe de um personagem, a descrição de
um ambiente, uma imagem podem ressuscitar “um passado privado, fugaz e, em grande
parte, inconsciente... Uma única palavra às vezes pode fazer surgir um passado:
por meio da leitura, o texto remete cada um à sua história íntima”[3]. E cada
leitor, ao percorrer um universo fictício, escapando do seu próprio, abre-se
para a experiência do outro, num desdobramento que implica contemplação e
participação, de acordo com a distância histórica que o separa da obra.
Mas não seria um exagero que a realidade, com
toda sua complexidade, seja organizada pela palavra literária? Que uma vez constituindo-se
representação dessa realidade esta seja compreendida sob sua ótica? Não. Embora, a Literatura não seja um par de óculos, absoluto, através do qual a
vida seja traduzível em toda sua nuança, ao conjugar conteúdo e forma, ela atua
na mente do ser humano, tornando-o consciente de sentimentos e emoções que
redundam em conhecimento de si mesmo e do outro. Por isso, a Literatura traz na
sua essência a capacidade de humanizar.
Como afirma Nelly Novaes
Coelho, a obra literária, devido à natural complexidade de sua matéria prima (a
vida, o ser humano) é um fenômeno basilar a ser descoberto como processo de
conhecimento do mundo. Nomeando
a Literatura como uma das mais importantes ciências do imaginário, a autora
deposita alta expectativa no texto literário por ser este fruto de “... um
autêntico e complexo exercício de vida,
que se realiza com e na linguagem – esta complexa forma pela
qual o pensar se exterioriza e entra em comunicação com os outros pensares”[4].
Detentora de riqueza
polissêmica, a palavra, na poesia ou na ficção, confere ao leitor a
oportunidade de participar do jogo criativo com a linguagem, fazendo-o
interagir com o mundo proposto pelo autor, numa troca comunicativa que aumenta
a capacidade de ver, de sentir a realidade objetiva e subjetiva. A Literatura
faz circular entre os povos de diferentes lugares e diferentes épocas o sentido
da humanidade. Por essa razão,
A obra literária pode ser entendida como
uma tomada de consciência do mundo concreto que se caracteriza pelo sentido
humano dado a esse mundo pelo autor. Assim, não é um mero reflexo na mente, que
se traduz em palavras, mas o resultado de uma interação ao mesmo tempo
receptiva e criadora[5].
Essa
dimensão conjugada da Literatura – a de oferecer fruição estética e
conhecimento – confere-lhe importância fundamental porque, na contramão da
modernidade em que o entretenimento fácil possui três letras (BBB), em sua
décima primeira versão, oferece
condições de enfrentamento da alienação, da análise superficial da vida e do
mundo. O fato de a Literatura ser deleite desperta críticas em alguns teóricos
que rechaçam o escapismo que a caracteriza, porém ao mostrar questões
fundamentais da existência humana, não diretamente, porque usa uma linguagem
simbólica, ela indaga sobre nós mesmos, sobre o outro, enfim sobre o modo de
ser e estar no mundo. Em outras palavras, enquanto sistema (produtor-receptor-transmissor),
com suas características internas (língua, temas, imagens), juntamente com
elementos sociais e psíquicos, a Literatura forma um tipo de comunicação inter-humana,
através da qual “as veleidades mais profundas do indivíduo transformam-se em
elementos de contato entre os homens e de interpretação das diferentes esferas
da realidade”[6].
No texto literário as
palavras são articuladas de tal modo que formam um tecido estético que dão a
impressão de que o leitor está em contato com realidades vitais, criam a
impressão de verdade. E com essa realidade inventada nos envolvemos,
aprendemos, concordamos, discordamos e passamos a conhecer melhor a realidade
vivida. Tudo a partir da comunicabilidade de uma obra que é fruto da capacidade
inventiva da mente de uma pessoa que sequer conhecemos, mas que tem tudo a ver
com nossos sonhos, desejos, angústias, medos e devaneios. Diante dessa
potencialidade, é fundamental entender as características do texto literário.
2-O TEXTO LITERÁRIO E O PODER
FORMADOR DA MENTE HUMANA
Ao aceitar que Literatura
oferece amplas possibilidades de enriquecer nossa percepção e visão de mundo,
importa compreender que:
- O texto literário situa-se no âmbito da ficção, portanto possui significado autônomo e não se refere diretamente ao contexto;
- Por ser independente de referentes reais, a obra literária efetiva-se pela composição de seus elementos estruturais (a forma, a disposição no papel, a linguagem conotativa);
- A obra literária apresenta um mundo possível, com espaços vazados, que são preenchidos pelo leitor com sua história de vida. É a inserção do leitor na escrita do autor, inscrevendo-se entre entrepalavras;
- A riqueza polissêmica da obra literária é um campo de plena liberdade que desobriga o leitor das amarras do cotidiano, residindo aí o prazer da leitura;
- A obra literária leva o leitor a participar ativamente da sua construção e reconstrução, segundo sua capacidade intelectual de produzir novos conhecimentos. Apropriadamente, Michel Certau nomeia o leitor um caçador em terras alheias;
- Para Vera Teixeira Aguiar, na Literatura o leitor encontra o que não pode ou não sabe experimentar na realidade. Advém dessa dimensão o fato de ser considerada escapista, corruptora e alienante, mas é também por causa disso que o leitor amplia suas fronteiras sem correr os riscos da aventura real;
- Porque tangencia questões básicas atinentes à vida, na maior parte das vezes, nas camadas do subconsciente e do inconsciente, a Literatura amplia os horizontes existenciais;
- Na obra literária há uma espécie de jogo que força o exercício da inteligência para além dos limites do próprio texto, por isso, com razão, Marisa Lajolo afirma que nós, leitores, não chegamos os mesmos ao final de um texto;
- Em resumo, o texto literário caracteriza-se por sua função estética, por sua natureza ficcional, por seu caráter de subjetividade e por sua plurissignificação.
Com essas características,
o objeto literário reveste-se de um valor intrínseco como formador de mentes.
Afinal, no mundo fragmentado de hoje, predominantemente imagético, a palavra se
faz imperiosa para nomear realidades que, frequentemente, se mostram tão sem
sentido aos nossos olhos. Ora, se a Literatura desenvolve a sensibilidade
estética, suscita emoção, alimenta o imaginário, promove o prazer e também
transmite conhecimentos, não é exagerado dizer, então, que é uma necessidade
humana e, consequentemente, um direito do cidadão.
Assim, até que ponto a
nação brasileira tem honrado o compromisso de tornar o objeto livro um bem
disponível para todas as classes sociais? A história da leitura em nosso país
mostra que não temos bibliotecas públicas para atender a demanda existente e
sequer existe número de livrarias compatível com o número de habitantes,
portanto estamos muito longe ainda do patamar dos países desenvolvidos. Ainda
assim, há consideráveis avanços quanto à democratização do acesso ao livro nas
escolas públicas.
E do ponto de vista das
classes populares é nos espaços da escola que o livro deve ser disponibilizado,
sob pena de comprometer o processo de humanização
de crianças e jovens, que nas palavras de Antonio Candido é analisado como:
...o processo que confirma no homem
aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a
aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das
emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A
literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna
mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante[7].
E Literatura de qualidade
não falta. Seja para adultos, seja para crianças e jovens, a ficção e a poesia
brasileiras tendem cada vez mais a se assumirem como espaço metafórico que
reflete a complexa rede de relações do homem no mundo. A boa nova é que obras literárias de todos os
gêneros e temáticas estão chegando em nossas escolas públicas, através de
programas federais de incentivo à leitura, com destaque para o PROGRAMA
NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA-PNBE.
Entretanto, com mais de
dez anos de política de distribuição de livros de literatura, nem professores,
nem alunos estão lendo como deveriam, tampouco as salas de leitura e/ou
bibliotecas constituem-se o vetor do planejamento pedagógico das escolas,
conforme comprova pesquisa do MEC, feita por amostragem, em todo o país, há
dois anos atrás[8].
Tendo como símbolo a
chave, os espaços de leitura das escolas estão guardando tesouros que não
cumprem a missão de transmitir um dos mais importantes legados da humanidade –
a Literatura universal e nacional – por uma razão muito simples: não há o
encontro entre livros e leitores. Ou seja, crianças e jovens brasileiras têm
sido cerceadas nos seus direitos de tornarem-se leitores porque o livro sozinho
não faz esse milagre.
O que fazer para que essa
necessidade básica – a Literatura – seja usufruída por quem de direito? É imperioso
que a escola desenvolva a educação literária.
3-EDUCAÇÃO LITERÁRIA COMO DIREITO DE
CRIANÇAS E JOVENS
Todo
processo educativo exige objetivo, metodologia, sistemática e com a educação
literária não é diferente. Aliás,
pressupõe muito mais do que é habitual nas escolas brasileiras. Comemorações
alusivas ao dia do livro, cantinho da leitura, recital de poesia, encenações
teatrais, todas essas atividades são deveras importantes, despertam o interesse
pelo livro e inculcam no imaginário da comunidade escolar a importância da leitura,
contudo tem se revelado pouco produtivo para tornar o ato de ler uma atividade
com criticidade. Portanto, se faz necessário que gestores e professores, os
sujeitos protagonistas do processo de formação de leitores, desenvolvam ações
sistemáticas que resultem na construção de uma educação literária.
Educação
literária significa que, ao ler uma obra fictícia ou poética, o leitor possa
construir sentidos a partir dos recursos lingüísticos de que dispõe e da
experiência que a vida lhe tem conferido. É ter a capacidade de experimentar o
texto literário, apropriar-se dele para fazer/retirar sentido nas suas
múltiplas dimensões: lingüística, formal, artística e sensorial, uma vez que a
Literatura, principalmente a destinada às crianças e aos jovens, é o espaço de
convergência de multilinguagens. Porém, essa condição não se dá num estalar de
dedos. Tampouco se forma leitores por decreto. É um processo que envolve
enfrentamento de todos que compõem a comunidade escolar.
Penso,
não no âmbito das possibilidades, penso no âmbito real, visualizando caixas de
livros que têm chegado, todos os anos, desde 1998, nas escolas públicas, que o planejamento pode e
deve ter o acervo do PNBE como eixo norteador de atividades de leitura. Para
tanto, livros devem estar disponibilizados aos professores, para que estes não
acusem gestores de serem guardadores de livros. Por outro lado, os professores
precisam usar o acervo onde há total
liberdade para isso, de modo a não serem acusados por gestores de que não têm o menor
interesse pelo livros que chegam.
Analisando este jogo de acusações mútuas, a
resposta à seguinte pergunta deveria ser o foco principal: afinal, onde se
esconde a verdade do problema da leitura em nossas escolas? Não está escondida,
está visível na performance dos alunos que não lêem nada, lêem pouco, lêem mal ou não são estimulados a
lerem Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Machado de Assis, Vinícius
de Moraes, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Cecília Meireles, Mário
Quintana, Júlio Vernes, Homero, Pablo Neruda, Guimarães Rosa, Gonçalves Dias,
Bartolomeu Campos Queiroz, Ricardo Azevedo, Eva Furnari, Lúcia Pimentel Góes,
Elias José, para citar alguns autores do PNBE cujas obras continuam
intactas. Em algumas escolas, são anos a
fio sem que haja iniciativa de promover o encontro entre LIVROS E LEITORES. Em
outras, são anos a fio fazendo atividades apenas pontuais para cumprirem o
calendário cultural.
Assim sendo, é muito
produtivo projetos de leitura na ótica da interdisciplinaridade em que professores
das mais diferentes áreas façam o planejamento em conjunto, escolham
determinadas obras do acervo, leiam num primeiro momento somente apreciando a
narrativa. Tomo como exemplo a obra A
volta ao mundo em oitenta dias, de Júlio Verne, PNBE/2009[9]. Impossível
não sentir emoção lendo tamanha aventura, impossível não torcer para que
Phileas Fogg ganhe a aposta feita com seus amigos. Para tanto, há de se compartilhar a narrativa
no dia a dia, um capítulo ou dois, criando expectativa para o dia seguinte. Num
segundo momento, ao final do livro, a abordagem pode ser direcionada para
diferentes pesquisas. As perguntas são várias: Como era o mapa da Europa naquela
época em comparação com o mapa atual? Como é uma procissão religiosa hindu? Quantas
colônias inglesas havia ao final do
século XIX? O que foi a Corrida do Ouro em São Francisco? O que significa para
os americanos a expressão ocean to ocean?
Quais os dados matemáticos da famosa
linha férrea que liga as duas costas marítimas dos Estados Unidos, do Atlântico
e do Pacífico? Como seria a descrição
das residências japonesas sob a ótica de Jean Passepartout durante a viagem? São
curiosidades que, inseridas nas áreas de Geografia, Filosofia, História, Inglês,
Matemática e Português, transmitem conhecimentos importantes, alimentam o
imaginário e estabelecem um vínculo afetivo com a obra lida, uma vez que “o
aprendizado a partir da relação leitor-texto parte dos aspectos sensoriais
(ver, ouvir os símbolos lingüísticos) e dos aspectos racionais (analisar,
criticar, correlacionar, interpretar)”[10].
Igualmente, levantar
questões antes da leitura se mostra um instrumento bastante eficaz para criar
expectativas e ativar conhecimentos prévios. Sobre A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos-PNBE/2010[11], por
exemplo, pode-se perguntar para aguçar o interesse do leitor: Quais
características teria um menino que fosse bastante diferente do ponto de vista
físico? Que coisas maravilhosas há em Tatipurun, um país fictício? Caralâmpia é nome de gente, de animal ou de
fruta? Como é a noite no país de Tatipurun? Se uma aranha falasse o que diria
para um menino? O que você faria se acordasse num lugar bastante estranho? Como
seriam as pessoas num país bem diferente do Brasil?
É preciso enfatizar que do
ponto de vista da linguagem, o professor
precisa, no ato da leitura compartilhada, chamar a atenção do aluno-ouvinte para certas
construções estilísticas da obra lida que fazem com que o modo como foi dito certa
idéia que o autor quis transmitir apresente o mais alto grau de significado, o
máximo de literariedade. Comentar as potencialidades da língua numa obra
literária se reveste de importância porque assim o leitor mergulha na palavra e
suas ilimitadas possibilidades comunicativas e expressivas de sentido.
Assim, sem retórica e sem floreio, o planejamento de leitura do acervo do PNBE
deve elencar objetivos exeqüíveis, descrever uma metodologia simples (inclusive
citando as obras a serem lidas durante o ano) e uma sistemática efetiva. Sem
arremedos e sem distorções, práticas de leituras devem ser desenvolvidas por
todos os professores em todas as áreas[12] (e não
somente por professores de Português), numa ação coletiva, demonstrando para a
comunidade escolar que a meta, inequivocamente, é a elevação do nível de
leitores, ainda que a subjetividade seja a marca de cada mediador de leitura no
desenvolvimento das atividades.
Não posso deixar de
registrar minha resistência em abordar um trabalho com a Literatura com esse
viés pedagógico, uma vez que tenho defendido exaustivamente o prazer de ler
simplesmente. Todavia, creio ser possível conciliar práticas leitoras de modo a
não empobrecer a arte literária, a não privilegiar teorias críticas em
detrimento da busca de uma familiaridade prazerosa com a obra. Além disso, preocupa-me
que sem planejamento se perca a constituição de um horizonte de qualidade e de
aprofundamento das obras lidas, porque como Teresa Colomer acredito que “ler se
aprende lendo”[13].
Lembrando que o exposto não é uma receita, mas uma
construção individual com todos as dificuldades inerentes ao processo educativo,
acredito na viabilidade de uma educação
literária em escolas públicas. Porque se não há saída para crianças e jovens
sem a educação formal, também não há alternativa para uma educação de qualidade
sem práticas de leitura eficientes e envolventes. Se enquanto objeto, o livro
já se constitui um direito conquistado nas escolas, o que estamos esperando
para torná-lo um direito concreto para o leitor pelo uso efetivo?
Até a década de 90,
dentre os inúmeros problemas considerados como empecilho às práticas leitoras
dizia respeito à ausência do livro. No
entanto, hoje, passados mais de dez anos do programa que o distribui em todas
as escolas brasileiras, a utilização do acervo está muito longe do esperado. Se
a Literatura brasileira, incluindo a infantil e juvenil, goza de alto prestígio
aqui e alhures (atingiu maturidade plena), se abundam no mercado editorial as
produções teóricas e metodológicas sobre o fazer pedagógico do processo de
formação de leitores e, por fim, se todos reconhecemos no ato de ler o pulo do
gato para uma educação de qualidade, por que não repensar as estratégias das
nossas ações?
Ocorre que chegamos a um
estágio em que aceitamos o status quo
como definitivo, admitimos que o fato de crianças e jovens não quererem ler
seja a maneira mesmo deles serem como são, que é normal essa alienação acerca
da palavra e fascinação pela imagem. Pois, creio ser possível
caminhar na contramão disso tudo. Com tantos livros ao nosso alcance sobre a existência humana e
sobre os mistérios da vida, vamos nos recusar ao que parece a lógica dos tempos
modernos - a da distração vazia e da
banalidade - patrocinada pela mídia e disponibilizada aos nossos alunos. Vamos
ler esta Literatura feita para conhecer a vida, que faz indagações sobre modos
de ser, que questiona a dinâmica da realidade. Para tanto, é preciso vivenciar
a palavra na condição de arte, num
exercício permanente, através de um caminhar juntos – alunos e professores –
descobrindo que,
A literatura constitui a possibilidade,
pela convivência com a contínua produção e com a circulação de percepções e
indagações inusitadas, de uma pessoa ou de um coletivo de pessoas de pensar a
vida delas, os modos de ser e estar no mundo; enfim, de viver e fazer a
condição humana[14].
Construir e executar um
planejamento que tenha como meta conhecer o acervo do PNBE, reveste-se de
importância porque sabemos que o direito de ler é pressuposto basilar da
cidadania, da democracia cultural. Sabemos quais as conseqüências de uma educação
literária, afinal ao se ocupar da palavra, tanto como “... expressão artística
quanto como meio de comunicação, a questão torna-se mais contundente, tendo em
vista o incontestável poder político de ler e escrever a palavra”[15].
Por que se constitui um dever de todos nós,
professores, compartilharmos Literatura com crianças e jovens? A razão é simples: não há educação, no sentido pleno da
dimensão do aprender, ser sensível, ético e tolerante, fora dessa decisão. Para tanto, precisamos ter a convicção de que ler Literatura
é uma experiência de nomeação, de conhecimento de si e do outro, é uma maneira de aprender através da palavra
mais subjetiva possível. Entretanto, bradar um discurso apologético sobre a
importância de ler é dispensável, pois o exemplo tem que falar por si. A
propósito, o Manifesto por um Brasil literário, em texto escrito por Bartolomeu
Campos de Queirós, divulgado em 2009, conclama a todos os brasileiros a
empreenderem esforços para tornar a leitura literária um direito de todos. Assim,
cada professor(a) pode perguntar a si mesmo(a): que ações vou desenvolver em
sala de aula para tornar concreto esse direito?
Reconhecendo quão
difícil e exigente é formar leitores, é
bom lembrar que você, professor(a), pode
fazer tudo que está ao seu alcance para fazer com que seus alunos leiam e,
ainda assim, muitos não se deixarão contagiar pelo seu entusiasmo. Contudo, se apenas um aluno demonstrar
interesse em compartilhar dessa vivência, terá valido a pena a decisão de
educar, humanizando pela palavra literária.
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[1]
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[2]
CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. São
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[3]
JOUVE, Vincente. A leitura. São
Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 119.
[4]
COELHO, Nelly Novaes. Literatura:
arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 24
[5]
TEIXEIRA, Vera Aguiar & BORDINI, Maria da Glória.Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto
Alegre:Mercado Aberto, 1993, p. 14.
[6]
CANDIDO, Antônio. A formação da Literatura Brasileira:momentos decisivos. Rio
de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2006, p.25.
[7]
Vários Escritos. p.180.
[8]
PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA (PNBE): leitura e bibliotecas nas
escolas públicas brasileiras.Brasília: Ministério da Educação, 2008.
[9]
A volta ao mundo em oitenta dias/Júlio Vernes; recontada por Fernando Nuno; São
Paulo:DCL, 2005.
[10]
GÓES, Lúcia Pimentel. Fábula Brasileira
ou Fábula Saborosa: sábia, divertida, prudente, criativa. São Paulo:
Paulinas, 2005.
[11]
RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos
pelados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
[12]Além
das obras literárias compõem o acervo do PNBE livros paradidáticos de excelente
qualidade em todas as áreas do
conhecimento, os quais proporcionam práticas leitoras instigantes e prazerosas.
[13]
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. IN: Nos caminhos da literatura.
FNLIJ;C&A (org.) São Paulo: Peiropólis, 2008.
[14]
BRITTO, Luiz Percival Leme. Literatura, Conhecimento e Liberdade. IN: Nos caminhos da literatura.
FNLIJ;C&A (org.) São Paulo: Peiropólis, 2008, p. 100.
[15]
LEAHY-DIOS, Cyana. Língua e Literatura: uma questão de educação.
Campinas, SP: Papirus,2001, p.11.
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